Por Walter Silva
Filhos de Gandhy, Badauê, Ilê Ayê, Malê Debalê, Oju Obá. Quando ouvimos o nome desses afoxés e blocos afros, exatamente nessa ordem, o que vêm à cabeça do leitor? Uma sequência de instituições carnavalescas afro-baianas, onde caberiam outros tantos afoxés e blocos afros, ou “tem um mistério que cabe no coração, força de uma canção que tem o dom de encantar”? Aposto na segunda opção.
Essa provocação inicial é só para lembrar o naipe do compositor baiano que, pela identificação da sua obra com o próprio povo, certamente deve ter apresentado a Paulo César Pinheiro uma Bahia diferente, uma Bahia produtora e recriadora ativa de cultura (notem que eu não escrevi reprodutora). Refiro-me, evidentemente, a Edil Pacheco, um sambista que conhece essa Bahia que recria, porque vive, e por isso pode ensinar um modo específico de ler o mundo; essa Bahia que, denunciando, resiste e, resistindo, enuncia. Enfim, falo aqui do registro de “Afros e Afoxés da Bahia”, o nome dado ao LP gravado em 1988 pela dupla.
Se é verdade que a gente não pode medir as pessoas com a mesma régua, o que implica em reconhecer e dialogar com as diversas visões de mundo, também é verdade que devemos reconhecer e destacar as ações que enunciam e permitem as pessoas serem mais. É bonito e emocionante perceber quando isso acontece. Quem quiser que discorde, mas foi exatamente isso o que eu percebi quando ouvi a canção “Malê Debalê”, composta por Edil Pacheco e Paulo César Pinheiro, gravada magistralmente por Lazzo Matumbi.
Não recordo precisamente quando foi a primeira vez que ouvi essa canção, mas tenho certeza de que faz mais de dez anos, tempo que estou longe da terrinha, do Malê, bloco afro do meu coração, e dos afoxés, principalmente o Filhos do Congo, outra paixão certamente ancestral. E por que ela jamais saiu da minha memória? Explico: a produção cultural desenvolvida pelas e a partir das entidades carnavalescas afro-baianas fundaram e reelaboraram, sobretudo nos últimos 50 anos, essa coisa que muitos insistem em afirmar ser a maior expressão do caráter festivo-criativo da cultura baiana, o carnaval. Mesmo assim, são, na sua maioria, entidades invisibilizadas, discriminadas e expostas a uma lógica autofágica e predatória de incentivos financeiros, tanto públicos como privados. Esse foi o pano de fundo que provocou a minha emoção quando ouvi a canção pela primeira vez: o “meu bloco” havia inspirado dois dos mais importantes sambistas do Brasil – e, pela beleza da canção, como haviam inspirado!
Com um arranjo que posiciona o berimbau como elemento estruturante da canção, na medida em que ele anuncia e ponteia aquele típico samba de roda de capoeira – na minha opinião o mais primoroso do trabalho, mas posso estar sendo tendencioso –, a letra da canção “Malê Debalê” não é modesta, e isso é bom, pois é verdadeira: “é lá que Ogum fez o seu congá, é lá que se vai bater pra esse Orixá” – para quem não é familiarizado com as expressões das religiões de matrizes africanas, “congá” é o espaço sagrado dentro do terreiro por onde fluem as energias dos Orixás. E como não é fácil resistir ao som do Malê, pedem aos Orixás para que desça toda a falange de Ogum e, também, “licença e permissão para dançar”.
Tanto “Malê Debalê” quanto as demais canções do LP são composições de Edil Pacheco e Paulo César Pinheiro, exceto “Ijexá” (a canção que abre esta coluna), de autoria apenas do baiano Edil Pacheco. Assim, ao “batizar” as canções com os nomes dos blocos afros, os compositores acabaram realizando uma respeitosa e bela homenagem aos afoxés e blocos afros, aos seus percussionistas, cantores e, principalmente, a todos que se conectam com essa cultura tão bem representada pela percussividade que produziu. Além da gravação de Lazzo Matumbi, que foi cantor do Ilê Ayê antes de firmar-se como uma referência do reggae nacional, o LP conta com os próprios compositores interpretando as canções “Olori” (Paulo César Pinheiro) e “Muzenza” (Edil Pacheco). Paulinho Feijão, ainda cantor do Ilê Ayê, Paulinho Araketu e Gilson Nascimento, cantor do extinto afoxé Afrequetê, interpretaram as homenagens feitas aos “seus blocos”, inclusive quem não lembra da gravação que Alcione fez de “Ara-ketu”, no LP “Fogo da Vida” (1985), e “Afrequetê”, em “Nosso nome: Resistência” (1987)? Continuando, Luis Caldas gravou “Badauê”, Gilberto Gil fez um belíssimo e suave registro de “Oju-Obá” e, ao interpretar “Olodum”, Margareth Menezes confirmou a conexão que mantinha com o bloco, pois havia acabado de gravar a canção de Luciano Gomes, “Faraó Divindade do Egito” (1987). Por fim, “Ijexá”, esse clássico de Edil Pacheco, gravado primeiramente por Clara Nunes no LP “Nação” (1982), à época casada com Paulo César Pinheiro, foi reservada à “Tribo Nação Ijexá” para finalizar o LP.
Assim como o CD “Capoeira de Besouro” (2010), tema da coluna “A Bahia de Paulo César Pinheiro – I”, “Afros e Afoxés da Bahia” também é um trabalho temático e, por isso, pode ser percebido como uma grande homenagem às entidades afro-carnavalescas. É um trabalho que consagra a baianidade do carioca Paulo e reafirma a versatilidade do “sambismo” do maragogipano Edil, que há muito já ensinou que Afoxé é uma coisa (instituição) e ijexá é outra (ritmo), mas aí já é uma outra conversa…
LP Afros e Afoxés da Bahia
Produzido por Durval Ferreira e Paulo César Pinheiro
Músicos:
Carlos Augosto: violão, baixo, vocais e arranjos
Lázaro: percussão e vocais
Paulo Sérgio: flauta
Renan, Edil Pacheco, Ramiro, Mabel, Cláudia, Fátima, Paulo José Caldas, Claudete Macedo, Marcos Antônio: vocais
Luiz Caldas: violão em “Badauê”
Gilberto Gil: violão em “Oju-Obá”
Fonte da imagem: discosbrasil2.blogspot.com/2010/10/afros-e-afoxes-da-bahia-edil-pacheco-e.html
Disco muito massa! Conheci por acaso por uma recomendação do YouTube tempos atrás… Ótima dica!
Massa demais.
Tô aprendendo com o Walter, sem ele saber, que existem vários ritmos e sons múltiplos na Bahia. Fora dela não há separações, para os leigos iguais a mim, entre ritmos e sons múltiplos que formam o som característico do carnaval tocado na Bahia.
Para nosotros, quando chega o carnaval entre nós o que se diz é que a banda tal só toca música baiana. E dificilmente, sem um aparato fundamentador teórico como base intelectual, podemos dizer que música tal baiana possui esse ou aquele ritmo, e tudo se torna “música baiana”. Mas estou começando a pegar o fio da meada. “Afoxé é uma coisa (instituição) e ijexá é outra (ritmo)…”
Valeu.