FONTE DA IMAGEM DA CAPA (I07-Paulo Freire): https://outraspalavras.net/estadoemdisputa/quem-tem-medo-de-paulo-freire/
Canções Freirianas
Por Walter Silva
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Sábado passado, dia dezenove de setembro, o mundo comemorou os 99 anos do nascimento daquele que se tornou a maior referência brasileira para a educação; aquele que, a partir do extremo compromisso que sempre manteve com a liberdade, dedicou a própria vida e contagiou outras tantas para, juntos, lutarem contra a opressão. Refiro-me, evidentemente, ao “Patrono da Educação Brasileira”, ao “Andarilho da Utopia”, denominações dadas ao “Menino Conectivo”, como o próprio Paulo Freire se percebia.
Imagino que muitos leitores devem estar se perguntando se eu não mandei este texto para a coluna errada, afinal, “aqui é uma coluna de música e educação não é música e música não é educação…” Jura que isso é verdade? Bem, para começo de conversa as diversas formas musicais são linguagens, assim como são as demais expressões artísticas, inclusive a literatura, e os outros fenômenos presentes nas representações sociais que dão sentido ao nosso “modo de vida”, ou seja, estou falando de Educação e também de Cultura. E por que são linguagens? Porque comunicam! Não é simples?
Ora, se a canção é uma forma musical então a canção comunica (e como comunica, pois entrega toda a potência simbólica da palavra à música). Se comunica ela traz consigo uma dimensão artística – certamente a mais evidente, mas não necessariamente a mais importante – e, sobretudo, uma dimensão política. É sobre isso que eu vou falar aqui: canções que comunicam o pensamento freiriano.
Acessando rapidamente as minhas lembranças musicais, diversas canções da galera do Clube da Esquina, de Chico Buarque, dos grupos Tarancón e Raíces de América, dentre outros, vieram como exemplares perfeitos para tratar esse ou aquele aspecto do pensamento freiriano, representar uma denúncia contra a opressão ou, mesmo, a consciência do oprimido de que “Ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo, os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo” (FREIRE, 1994, p.39). Assim, cercado de tantos fragmentos de memória, destaco essa canção do maranhense João do Vale:
Minha História
(João do Vale/Raimundo Evangelista – 1965)
Seu moço, quer saber, eu vou cantar num baião
Minha história pra o senhor, seu moço, preste atenção
Eu vendia pirulito, arroz doce, mungunzá
Enquanto eu ia vender doce, meus colegas iam estudar
A minha mãe, tão pobrezinha, não podia me educar
A minha mãe, tão pobrezinha, não podia me educar
E quando era de noitinha, a meninada ia brincar
Vixe, como eu tinha inveja, de ver o Zezinho contar:
– O professor raiou comigo, porque eu não quis estudar
– O professor raiou comigo, porque eu não quis estudar
Hoje todo são “doutô”, eu continuo joão ninguém
Mas quem nasce pra pataca, nunca pode ser vintém
Ver meus amigos “doutô”, basta pra me sentir bem
Ver meus amigos “doutô”, basta pra me sentir bem
Mas todos eles quando ouvem, um baiãozinho que eu fiz,
Ficam tudo satisfeito, batem palmas e pedem bis
E dizem: – João foi meu colega, como eu me sinto feliz
E dizem: – João foi meu colega, como eu me sinto feliz
Mas o negócio não é bem eu, é Mané, Pedro e Romão,
Que também foram meus colegas, e continuam no sertão
Não puderam estudar, e nem sabem fazer baião
Capa e contracapa do LP “O poeta do Povo”. Fonte: https://pauta.showlivre.com/quintessencia/o-lirismo-humanista-e-combativo-de-joao-do-vale-o-poeta-do-povo/]
Para quem não conhece, esse tom de denúncia social e de consciência da opressão sempre marcou presença nas canções de João do Vale. Não foi por acaso, portanto, que em dezembro de 1964 ele participou com Zé Keti e Nara Leão, depois substituída por Maria Bethânia, do célebre show “Opinião”, um musical que denunciou os problemas de um Brasil recentemente aprisionado pela ditadura, ali representado pelo nordeste, pelo morro carioca e pela classe média brasileira: era a música nordestina, o samba e a bossa nova protestando contra a ditadura. Em “Minha História”, essa consciência está expressa pela dificuldade que certamente passavam Mané, Pedro e Romão, que não tiveram acesso à escola e não sabiam fazer baião, para “serem mais”, para enunciarem a própria palavra, pois, aparentemente, viviam emersos na luta pela sobrevivência.
A partir dessa canção, perfeito exemplo de que não dá para separar a dimensão política da dimensão artística, podemos chegar a uma rápida constatação: se a opressão busca calar a voz e o pensamento do oprimido, também é ela que, contraditoriamente, possibilita a criação e enunciação de ideias e obras que buscam superá-la. Percebendo esse movimento dialético fica bem mais fácil compreender as canções e as demais expressões artísticas produzidas pelos oprimidos. Passa a ser um movimento interno de redução de preconceitos e de radicalismos estilísticos hegemônicos, quase sempre presentes nas nossas classificações artístico-musicais. Mais ainda, pensando assim, fica inevitável aceitar o quanto a visão do mundo dos oprimidos pode ensinar e libertar os opressores dessa condição histórica em que eles se encontram.
Esse movimento é “natural” para quem está comprometido com propostas libertárias, sejam elas na educação, propriamente dita, nas expressões artísticas, na política, na religião, enfim, em todas as dimensões capazes de resistir à opressão. Foi isso o que aconteceu na década de 1980, em São Paulo, quando a Secretaria Municipal de Educação (SME-SP) bancou o projeto “Rap… ensando a educação”. Em linhas gerais o projeto consistia em levar para a escola grupos de Rap e rappers para discutirem temáticas sociais já incorporadas nas canções e no cotidiano das comunidades, mas estrategicamente enviesadas ou invisibilizadas no universo da escola. Quem estava à frente da SME-SP à época? Acertou quem disse Paulo Freire. Mais ainda, vocês sabem qual grupo estava começando a carreira artística na década de 80 e acabou virando um grande apoiador do projeto e do pensamento freiriano? Os Racionais MC’s!
Racionais MC’s.
Fonte: https://blog.estantevirtual.com.br/2019/01/17/sobrevivendo-no-inferno-uma-nova-chance-para-ler-e-ouvir-o-rap-nacional/]
Categorias freirianas estão presentes em vários momentos das canções dos Racionais MC’s e nas demais obras e ideias que buscam a superação da opressão. Peguemos, como exemplo, a canção “Fórmula mágica da paz”, gravada em 1997 no CD “Sobrevivendo no inferno”. Essa canção, composta por Mano Brown, fala sobre as aprendizagens e os conflitos existenciais de um jovem (o narrador), a partir do que viveu na sua “área” desde a infância. Assim, a violência a que estão expostos os jovens de comunidades, representada pelas constantes notícias de mortes dos amigos que foram envolvidos pela criminalidade, é o ponto que faz o narrador confessar que, mesmo sendo um “campo minado” e mesmo tendo pensado em sair de lá, “[…] É muito fácil fugir, mas eu não vou, / Não vou trair quem eu fui, quem eu sou / Eu gosto de onde eu tô e de onde eu vim / Ensinamento da favela foi muito bom pra mim” (BROWN, 1997). Ah, para quem acha que o Rap só poderia ser trabalhado em escolas municipais, o CD “Sobrevivendo no inferno” fez parte das indicações de leitura para o vestibular da Unicamp em 2020 e continuará fazendo parte, pelo menos, até 2022 (COMISSÃO PERMANENTE PARA OS VESTIBULARES DA UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS, 2020).
Apesar de não ter transcrito a íntegra da letra da canção, devido às limitações da proposta da coluna, os trechos e o resumo do que foi apresentado já são suficientes para associar a canção à categoria “Leitura do Mundo”, desenvolvida por Paulo Freire. Vejamos o que Freire escreveu a esse respeito: “A leitura do mundo precede a leitura da palavra, daí que a posterior leitura desta não possa prescindir da continuidade da leitura daquele. Linguagem e realidade se prendem dinamicamente” (FREIRE, 1989, p.9). Percebam a conexão da ideia central de Mano Brown com a categoria freiriana: o compositor apresenta a relação que conseguiu manter com a comunidade como elemento estruturante da sua formação enquanto ser humano; uma relação capaz de proporcionar uma leitura do mundo específica, crítica em relação à realidade em que viveu. Portanto, qualquer leitura da palavra que vier a fazer durante a sua existência, jamais poderá apartar-se da leitura daquele mundo.
Por fim, é evidente que o Rap não se configura como gênero musical exclusivo para lidar com a denúncia e a superação da opressão. Os gêneros associados ao que chamamos de “forró”, os sambas, as músicas afro-brasileiras, enfim, os demais gêneros e expressões artísticas podem assumir esse papel desde que tragam consigo uma leitura do mundo autêntica dos grupos oprimidos; uma leitura capaz de denunciar, mas sobretudo disposta a educar e transformar o opressor e a realidade por ele mantida.
Até o ano que vem, ano do centenário de Paulo Freire, certamente voltarei a esse assunto destacando outras canções e perspectivas libertárias. Estamos só começando…
BROWN, Mano. Fórmula mágica da paz. Mano Brown. In: RACIONAIS MC’s. Sobrevivendo no inferno. São Paulo: Cosa Nostra, 1997. CD. Faixa 11.
FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. São Paulo: Autores Associados: Cortez, 1989. (Coleção polêmicas do nosso tempo; 4).
FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 17ª. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
COMISSÃO PERMANENTE PARA OS VESTIBULARES DA UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS [home page na internet]. São Paulo: UNICAMP; 2020. Lista de livros 2022; [cerca de 4 telas]. Disponível em: http://www.comvest.unicamp.br/vestibular-2021/lista-de-livros-2/
VALE, João do; EVANGELISTA, Raimundo. Minha história. João do Vale. In: VALE, João do. O poeta do povo. Rio de Janeiro: Philips, 1965. Long play. Lado A. Faixa 5.
Massa demais, Walter.
Gostei do texto todo e das referências musicais citadas porque você é excelente fazendo esse trabalho. Mas fiquei entusiasmado mesmo quando vi a referência ao Racionais MC’s.
Para mim eles sao os maiores cronistas da vida da periferia deste país. Fale mais dos caras em outros textos, vai. Faça mais essa relação iniciada neste texto. Ficou massa demais.