sexta-feira, abril 26, 2024
Home Dança & Teatro O "P" da MPB

O “P” da MPB

I08-O-P-da-MPB
http://learningbrazport.blogspot.com/2012/11/the-100-greatest-mpb-albums-from.html

O “P” da MPB

Por Walter Silva
[email protected]

Vocês já pensaram sobre o quanto é complexo definir o que entra e, principalmente, o que não entra na tal MPB?
“Mas que perguntinha mais cretina é essa colunista?” Perguntariam os leitores mais afoitos e responderiam de “bate pronto”: “MPB é Música Popular Brasileira e ponto final. Aí é claro que entraria forró, bossa nova, samba, frevo…”.
Bacana, boa explicação, vírgula, mas qual ou quais critérios deveríamos admitir para um trabalho entrar nesse eclético e vastíssimo grupo? Basta fazer forró, por exemplo, para o compositor/intérprete receber a outorga de membro da MPB? Tem de ser divulgado por qual(ais) mídia(s) para ser popular? Tem de atingir (ou não atingir) qual(ais) público(s)? São músicas livres de influência estrangeira? Ah, aqui vemos algo curioso, pois o que convencionamos chamar de MPB acabou sendo, na prática, essa forma musical que combina música com letra, ou seja, o “M” da MPB deveria ser “C” de canção.
Bom, fiz a provocação e saio de fininho porque não vou discutir, muito menos pretendo definir, o que é MPB, mesmo após seis décadas do seu batismo sob tal designação. Contento-me nesta coluna, e isso já é muito, pois o papo é comprido e complicado, em “caçar conversa” sobre o que é popular e como esse critério associou-se ou dissociou-se da nossa MPB.
Vou começar relatando uma conversa que tive com um senhor, de início bem simpático, mas depois nem tanto, que conheci numa livraria no sábado passado. Ele é o dono de uma pequena, mas bem sortida livraria, diga-se de passagem. A variedade e a qualidade dos autores que ele disponibiliza é realmente invejável. Aí, assumindo, orgulhoso, o papel daqueles livreiros que se confundem com as estantes e os livros, vangloriava-se por conhecer tudo o que tinha à venda e, por isso, julgava-se o mais capacitado livreiro do Brasil; criticava aqueles que pediam descontos, pois achava aquilo uma atitude depreciativa, e, também, quem queria fazer pesquisa a partir de algumas publicações de leituras muito iniciais, como aquelas que prometem entender o pensamento de fulano ou a história disso ou daquilo em cinco ou dez lições (nisso eu concordei com ele).
Enquanto estava olhando os livros, percebi na conversa dele com dois fregueses, o prazer que tinha em analisá-los e, sempre num tom de falso lamento, diagnosticá-los taxativamente: “Ah, você ainda não se libertou disso…”, “Você ainda está preso naquilo…”.
Imaginando que logo passaria pelo seu crivo, fiquei curioso sobre a análise que ele faria de mim. Não deu outra, descobri que eu não respeitava as livrarias porque havia confessado, na verdade mais provocado que confessado, que era fascinado por sebos. Na ótica dele, eu deveria comprar mais em livrarias pequenas, regionais como as dele, do que em sebos. Descobri que tinha de procurar por coisas novas e abandonar o passado, arejar a mente. Tentei, em vão, justificar que a maioria das obras que procuro já saíram de catálogo, que tenho de fazer recortes por conta da pesquisa que estou fazendo e que as leituras novas não necessariamente superam o que já foi escrito. Não adiantou: além de não gostar de livrarias, descobri que tenho de ler mais e sobre tudo o que ele indicava ou tinha lido, e que eu gostava de livros velhos, pois, para ele, não existem livros antigos; ou é novo ou é velho. Não sei em que momento a conversa descambou para a cultura e eu lhe perguntei num tom de provocação: e você conhece afoxé? Aí veio o mote para a coluna: “eu não gosto disso, não, dessa coisa popular que chamam de música; eu ouço mesmo é Bach”.
Essa conversa me fez pensar sobre a leitura do mundo daquele senhor. Sobre a ideia que aquele homem de mais de setenta anos (ele falou a idade, mas não gravei), com uma vasta leitura e “formado” em um ambiente culturalmente diverso, tinha sobre a categoria popular.
De forma sintética, o que percebemos naquela conversa é uma ideia muito comum de “popular que ameaça”, que traz consigo uma força desagregadora de formas idealizadas. É um popular que deve ser contido porque revela a força subliminar do povo que o elegeu. Mas como assumir essa postura é assumir a fragilidade como gêmea siamesa, é melhor apelar para a “estética” e estereotipar as expressões populares como expressões de “mau gosto” – portanto pobres, periféricas e marginais –, pois não se coadunam com a centralidade de um projeto político heterorreferenciado. É o popular como oposição ao erudito, ou seja, aquilo que Bakhtin tão bem percebeu quando diagnosticou a causa dos românticos não terem entendido a obra de um dos mais importantes escritores europeus do Renascimento, François Rabelais: dentre outras questões, faltou-lhes “[…] a capacidade de desfazer-se de muitas exigências do gosto literário profundamente arraigadas. A revisão de uma infinidade de noções e, sobretudo, uma investigação profunda dos domínios da literatura cômica popular […]” (BAKHTIN, 2010, p.3, grifo do autor).

IMAGEM (I08-Villa-Lobos):
Fonte: http://brunomadeira.com/obras-para-violao-de-heitor-villa-lobos/
Legenda: Villa-Lobos aprendeu violão nas rodas de choro cariocas, incorporando, na sua escrita violonística, técnicas e elementos do choro, da viola caipira e da música indígena.

Pensando assim, palmas, palmas e muitas palmas para Heitor Villa Lobos, cuja obra tão bem poderia ensinar ao livreiro. Sem negar a formação erudita, aliás valendo-se dela para reafirmar a influência do popular na sua formação, Villa Lobos, em vários momentos da sua obra, comprovou a potência musical que resulta da aproximação do que se convencionou chamar de erudito com o tal popular, duas fortes referências musicais aparentemente inconciliáveis na perspectiva colonizadora de quem só ouve Bach e despreza o ijexá e os afoxés por serem populares. E foi assim que ele compôs “Danças Características Africanas” (1916), diversos estudos para violão no gênero choro, serestas e cirandas para piano e ainda conciliou Bach com cantigas e elementos musicais populares nas suas “Bachianas Brasileiras” (o “Trenzinho Caipira”, também conhecida como “Bachiana Brasileira n.º 2”, não é canção, mas, de tão popular que é, bem poderia ser enquadrada como MPB, ou não?).
A obra de Villa Lobos fez escola no Brasil e um dos seus mais ilustres e declarados discípulos foi Tom Jobim. A obra de Tom é muito bem referenciada como MPB, assim como a de Carlinhos Lira, Ronaldo Bôscoli, Roberto Menescal e toda a geração bossanovista, fortemente marcada pelas influências harmônica do jazz e rítmica do samba. Falando em samba, Cartola, Nelson Cavaquinho, Paulinho da Viola, Monarco, Adoniran Barbosa, Ney Lopes só para citar alguns, são referências do samba, têm várias composições que se popularizaram, circulam bem entre os segmentos da “intelectualidade” brasileira pertencentes às classes média e alta e são considerados MPB. Já Parangolé, Thiaguinho, Negritude Júnior, Katinguelê, Art Popular, só para citar alguns, não saem das rádios, são amplamente consumidos pela população (inclusive pelas classes média e alta), mas não são MPB.
Esse último grupo é fácil de explicar: eles podem ser exemplificados como produtos da indústria cultural, por isso tocam em programas de TV, novelas, suas “Lives” são concorridíssimas… Mas eu vos pergunto: a MPB também não se valeu da indústria cultural? Ela mesma não buscou a “mass media” e tentou impor o seu produto cultural, reagindo firmemente à “invasão” de produtos mais facilmente assimiláveis? E olhe que eu nem estou falando da rejeição à Amado Batista, Fernando Mendes, à “folclorização” das músicas classificadas como regionais… Refiro-me, especificamente, à reação de parcelas significativas da “intelectualidade” brasileira à Jovem Guarda, ao Rock´n Rool, à Black Music…

IMAGEM (I08-Marcha-contra-a-guitarra):
Fonte: https://musicnonstop.uol.com.br/cantar-em-ingles-e-proibido-num-pais-que-ainda-vive-o-medo-da-guitarra-eletrica/
Legenda: Gritando palavras de ordem como “Queremos o que é nosso” e “Fora a guitarra elétrica”, diversos artistas como Elis Regina, Jair Rodrigues e Gilberto Gil (foto) participaram da bizarra marcha contra a guitarra elétrica.

Querem mais? Quem não lembra do desespero da antiga TV Record, que via o seu sucesso “O Fino da Bossa”, programa apresentado por nada mais nada menos que Elis Regina e Jair Rodrigues, perder audiência por causa do fenômeno popular que surgia revolvendo as estruturas fonográficas nacionais da segunda metade dos anos de 1960, a Jovem Guarda? Forçando um pouquinho mais da memória, lembraremos que quem invadia o mundo, àquela época, eram os meninos de Liverpool, isso mesmo, os Beatles, abrindo caminho para a entrada definitiva das canções anglo-fônicas no Brasil. Adivinhem qual foi a reação da TV Record frente à essa queda de “audiên$ia” (sim, o cifrão não foi um erro de digitação, pois o LP “Os Dois na Bossa”, de 1965, foi o primeiro a vender mais de um milhão de cópias no território nacional): organizou um movimento chamado “Frente Única da Música Popular Brasileira”, que, dentre outras ações, resultou numa passeata liderada por Elis, Jair Rodrigues e Geraldo Vandré, mas apoiada por diversos outros artistas como Edu Lobo, Zé Keti e, acreditem, Gilberto Gil, cuja carreira estava sendo impulsionada por Elis. Caetano e Nara Leão reagiram e negaram-se a participar da passeata por considerarem-na fascista; horrorizados, assistiram tudo de uma janela do Hotel Danúbio. Então, isso é ou não é um movimento político, fortemente influenciado pelos interesses da indústria cultural, querendo determinar o que é e o que não é popular?


IMAGEM (I08-Banda-de-Pífanos-de-Caruaru):
Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=CcXaNBDSsdk
Legenda: Capa do LP Banda de Pífanos de Caruru (1976). A primeira canção deste disco tem um dos mais belos registros da canção Pipoca Moderna (Caetano Veloso/Sebastião Biano). O link da Fonte remete o leitor ao arquivo no Youtube.

Bem, como situação parecida com o samba repete-se com o forró e com a música sertaneja, já temos algumas pistas interessantes, não para bater o martelo, mas para começar a pensar melhor sobre o “P” da MPB: esse “P” não seria de um marcador bem mais político do que popular, de um grupo socioeconômico um pouco (ou bem) mais privilegiado, tentando definir o que é e o que não é popular? Acho interessante esta pergunta porque não acredito que a Banda de Pífanos de Caruaru, ao fazer a sua música tão representativa de uma região do nosso Nordeste, estivesse preocupada se estava ou não fazendo música popular. Nessa mesma perspectiva incluo o Mestre Vitalino e a sua materialização cotidiana no barro pernambucano, a genuinidade do samba de roda representada por Dona Edith do Prato, a rima rápida e cortante dos repentes de Bule Bule ou dos cordéis cearenses de Patativa do Assaré.
Vejo, hoje, como foi perigosa a criação dessa tão complexa MPB, que na verdade nada criou, só classificou o que já tinha. Em certa medida, não foi nada tão diferente do que os colonizadores fizeram e continuam fazendo para colonizar: mudam os nomes e classificam as coisas que sempre existiram, alteram os seus sentidos e nos ensinam o certo, pois tudo antes estava errado.
Ah, para não dizer que não falei do livreiro, ele abria uma exceção para Chico Buarque.

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, Mikhail Mikhailovitch. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo: Hucitec, 2010.
BUENO, Eduardo. Marcha contra a guitarra elétrica. Youtube, 14 de abr. de 2019. Disponível em: < https://youtu.be/AbJZIHyTKRg >. Acesso em: 08 de out. de 2020.

MADEIRA, Bruno. Heitor Villa-Lobos e o violão. 2007. Disponível em: < http://brunomadeira.com/obras-para-violao-de-heitor-villa-lobos/ >. Acesso em: 08 de out. de 2020.

MOTTA, Nelson, CABRAL, Sérgio, VELOSO, Caetano (et. ali). Marcha contra a guitarra elétrica e o tropicalismo. Youtube, 16 de nov. de 2019. Disponível em: < https://youtu.be/BHkJ3IBvFLg >. Acesso em: 08 de out. de 2020.

PORTAL R7. “O Fino da Bossa” reúne granes nomes e reconta história da música. Disponível em: < https://entretenimento.r7.com/famosos-e-tv/o-fino-da-bossa-reune-grandes-nomes-e-reconta-historia-da-musica-06102019?amp >. Acesso em: 08 de out. de 2020.

SILVA, Guilherme. Cantar em inglês é proibido em um país que ainda vive sob o medo da guitarra elétrica. UOL. 2016. Disponível em: < https://musicnonstop.uol.com.br/cantar-em-ingles-e-proibido-num-pais-que-ainda-vive-o-medo-da-guitarra-eletrica/ >. Acesso em: 08 de out. de 2020.

VELOSO, Caetano. Caetano Veloso – passeata contra a guitarra elétrica. Youtube, 16 de nov. de 2019. Disponível em: < https://youtu.be/DtPFgs4T-Us >. Acesso em: 08 de out. de 2020.

4 COMENTÁRIOS

  1. A cada coluna, uma aula musical e histórica desse nosso vasto Brasil, nos trazendo fatos pitorescos que se encontram guardados nas últimas “gavetas” da memória popular. Maravilhoso !!

    Sobre o tal livreiro, como diz Caetano : “É que Narciso acha feio aquilo que não é espelho”. 😉

  2. Lendo esse texto do Walter fiquei meio triste porque ele botou todas as cartas na mesa e desse jeito ficou difícil sugerir algo a mais do que foi dito. Tá demais.

    E diante de todas as provocações contidas nele me lembrei da primeira vez que ouvi “Rock ‘n’ Roll” de Raul e Marcelo Nova:

    “… No teatro Vila Velha, velho
    conceito de moral
    Bosta Nova pra universitário
    gente fina, intelectual
    Oxalá, Oxum dendê Oxóssi de não sei o quê (de não sei o quê)…”

    Não tinha como não lembrar. Provocações são sempre estimuladoras.

    Abraço.

DEIXE UMA RESPOSTA

Por favor insira seu comentário!
Digite seu nome aqui

Mais Lidas

Bahia ganha trilhas turísticas

Por Redação  Bahia ganha trilhas turísticas para observação de cogumelos na Chapada Diamantina e sul do estado. Além das paisagens naturais que despertam a atenção de...

Soft Skills: você sabe o que é?

Por Dora Paiva  A SOFT SKILLS, é uma expressão da língua inglesa, que aos poucos vai penetrando e dominando o setor de Recursos Humanos –...

Seleção de Elenco para série “Iceberg”

Por Redação  Inscrições para “Iceberg” são voltadas para pessoas com ou sem experiência em dramatização. A produtora baiana Têm Dendê recebe até o dia 15 de...

CPM 22 era só CPM: vocês sabiam?

Por Teo Gelson  Você sabia que, Badauí no passado já foi entregador de panetone Wally escreveu a música "Garota da TV" para uma ex-namorada que havia...