Por Teo Gelson
Asa Branca, uma cidadezinha perdida no interior do Brasil, vive em função de um mártir, um santo milagreiro. Por lá, todos conhecem a história de Roque, coroinha e artesão de imagens de barro que morreu defendendo o município do ataque do bandido Navalhada (Oswaldo Loureiro). Depois disso, uma menina doente diz que teve uma visão com Roque e ficou curada. A partir daí, outros supostos milagres passam a ser atribuídos a ele.
A fama de Roque Santeiro se espalha, atraindo romeiros e curiosos. A economia, a política e os costumes da população de Asa Branca giram em torno desse cidadão ilustre, que ganha, inclusive, uma estátua na praça central. Por trás de todo mito, no entanto, há sempre a verdade: o ex-coroinha não tem nada de santo. Roque (José Wilker) aparece vivo depois de ter fugido com o dinheiro da igreja.
Esse retorno é visto, especialmente pelos poderosos, como uma ameaça ao que foi construído na cidade. O coronel Sinhozinho Malta (Lima Duarte) e a Viúva Porcina (Regina Duarte), que ficou famosa por se apresentar como esposa do falecido sem nunca tê-lo conhecido, diga-se de passagem, escondem a verdade sobre o falso mártir para se manterem relevantes. Outros descobrem o segredo e nem todos concordam com a sustentação da mentira.
A exploração política e econômica de um mito sustentado pela fé popular é a temática que conduz “Roque Santeiro”, uma das novelas mais emblemáticas da televisão brasileira que, nesta segunda-feira (21), passa a fazer parte do catálogo do Globoplay.
Até hoje apontado como um dos melhores do gênero, o folhetim fez sucesso por conta dos dilemas criados a partir da construção e adoração de um herói, além, é claro, dos personagens inspirados que povoavam Asa Branca, um lugar de sotaques misturados, falhas e muita fé
“Roque Santeiro” é inspirada na peça teatral “O Berço do Herói”, escrita por Dias Gomes. No espetáculo, o personagem central é Cabo Jorge, um pracinha da Força Expedicionária Brasileira que é dado como morto, na Itália, após enfrentar nazistas na guerra. A fama de herói do soldado faz a cidade onde ele vivia mudar de nome e passa a reger a economia local. Assim como Roque, Cabo Jorge, na verdade um desertor, também aparece vivo para desespero daqueles que desejam preservar os lucros e o poder conquistados com a lenda.
“O Berço do Herói” deveria ter sido encenada, pela primeira vez, em 1965, no Teatro Princesa Isabel, no Rio de Janeiro. O espetáculo, dirigido por Antonio Abujamra, foi proibido pela censura federal duas horas antes da estreia. A ditadura militar manteve o texto proibido por cerca de 20 anos. A primeira encenação da peça acabou acontecendo nos Estados Unidos, em 1976.
Substituindo a temática militar, em 1975, Dias Gomes propôs à TV Globo uma adaptação do espetáculo para o horário das 20 horas. A sinopse e os primeiros capítulos foram enviados para a censura federal e aprovados. A produção seria protagonizada por Francisco Cuoco (Roque), Betty Faria (Porcina) e Lima Duarte (Sinhozinho Malta). Perto da estreia, com 36 capítulos já gravados, a emissora foi notificada de que a exibição do folhetim estava proibida.
Sem conseguir reverter a decisão, a Globo foi obrigada a exibir uma versão compacta de “Selva de Pedra”. A emissora também solicitou que a autora Janete Clair criasse uma história a toque de caixa, que reaproveitasse o elenco e parte dos cenários. Em apenas três meses, a novelista desenvolveria outro clássico da teledramaturgia: “Pecado Capital”.
Em “O Livro do Boni”, José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni, todo poderoso da área de entretenimento da emissora na época, revelou o motivo da revisão da censura. Uma ligação de Dias Gomes a Nelson Werneck Sodré havia sido grampeada pelo governo. Na conversa, o autor disse que “Roque Santeiro” era “O Berço do Herói” sem farda.
Boni contou no livro que sugeriu que a censura fosse exposta em um editorial no “Jornal Nacional”. Roberto Marinho, dono do grupo Globo, autorizou e encomendou o texto ao diretor de jornalismo, Armando Nogueira. Parte do elenco da novela chegou a viajar a Brasília para tentar uma audiência com o presidente Ernesto Geisel, sem sucesso. “Roque Santeiro” só seria exibida em 1985.
Sem empecilhos para ser produzida, “Roque Santeiro” finalmente estreou e os capítulos que tinham sido escritos por Dias Gomes dez anos antes foram reaproveitados. O autor, no entanto, não quis seguir com o projeto e Aguinaldo Silva foi chamado para assumir a novela a partir do capítulo 41, segundo o projeto “Memória Globo”.
Marcílio Moraes, Joaquim de Assis e a pesquisadora Lilian Garcia atuaram como colaboradores. A trama foi um sucesso e Gomes procurou Boni para reassumir o folhetim. Silva escreveu até o capítulo 163 e, segundo o ex-todo poderoso do entretenimento, foi difícil convencê-lo a entregar a novela ao criador da história.
“Foi difícil tirá-la do Aguinaldo, que havia acertado em cheio e tinha todo o direito e concluir o projeto. Como o sofrimento do Dias era muito grande, contei com a ajuda e a compreensão do Aguinaldo. Fizemos uma transição a oito mãos, bem rápida, e o Dias escreveu os capítulos finais”, contou o diretor da emissora em “O Livro do Boni”.
“Roque Santeiro” foi um fenômeno de audiência, atingindo recordes logo nas primeiras semanas. Segundo Aguinaldo Silva, “Roque Santeiro” registrou média de 67 pontos no horário. A novela entrou para a história da televisão brasileira como a única que obteve 100% de audiência no último capítulo, exibido no dia 21 de fevereiro de 1986.
O projeto “Memória Globo” destacou que, em Recife, jornais da época apontaram que candidatos às eleições para deputado chegaram a cancelar comícios que seriam realizados no horário em que a novela era exibida. “Roque Santeiro” ganhou duas reprises no “Vale a Pena Ver de Novo” e também fez sucesso no canal Viva.
Oficialmente, foram escritos dois finais para “Roque Santeiro”. No primeiro, Porcina ia embora de Asa Branca com Roque. Já no segundo, a viúva que foi sem nunca ter sido terminava com Sinhozinho Malta. Em entrevistas, Aguinaldo Silva disse que preferia que a personagem de Regina Duarte fosse feliz ao lado do falso santo milagreiro, mas, como foi Dias Gomes que finalizou o folhetim, Porcina ficou com o coronel vivido por Lima Duarte. A cena foi inspirada no clássico “Casablanca”, filme protagonizado por Humphrey Bogart e Ingrid Bergman.
No documentário “A Negação do Brasil”, do diretor Joel Zito Araújo, ator Tony Tornado, que viveu Rodésio, o capataz da Viúva Porcina na trama, contou que participou da gravação de um terceiro final. Nele, a personagem de Regina Duarte deixava Roque e Sinhozinho para ficar com Rodésio. Tornado disse considerar o desfecho coerente, uma vez que o capataz “era o único que não tinha abandonado Porcina”. O ator declarou que “faltou coragem” para levar esse final ao ar.
Fonte: https://trocandodecanal.com/



