Alan Dantas
@dicasdodelicia
Sair da noite que a pandemia nos trouxe ainda é uma tarefa colossal para muitos de nós… Os antigos costumes já não ocupam os mesmos lugares na memória e na ação. As cotidianidades exigem agora uma corajosa postura: vencer alguns medos que aprendemos a nutrir.
Pode parecer absurdo pensar nessa tarefa, uma vez que o risco do vírus ainda não acabou. Milhares de vidas continuam sendo ceifadas para uma doença que já tem vacina, e o luto coletivo que vivenciamos possui dimensões individuais que não conseguimos medir. Mas agora o cuidado precisa se revestir de resiliência, em uma atitude de respeito à nossa saúde mental e na busca de uma esperança crítica, como dizia o grande mestre Paulo Freire, porque viver, esse belo perigo, está aí.
A saúde mental do povo brasileiro foi atacada de diversas formas. Nos anos 2020 e 2021, especialmente, fomos conduzidos a um isolamento social extremamente necessário, que acabou reverberando em muitas arenas vitais: a violência institucional de discursos negacionistas, a fragilidade dos laços mediados pela tecnologia, a quebra de acordos sociais importantes como a educação, além de tantos outros problemas sociais, como a violência doméstica e a insegurança alimentar, que foram potencializados com o tempo de confinamento. Vivemos uma expectativa de redução de danos, diante do risco letal e real a que a covid-19 nos expôs/expõe. Nessa correnteza, a depressão, a ansiedade e o suicídio, dentre outros adoecimentos, seguiram o fluxo. E muitos discursos em torno da saúde mental, especialmente nas redes digitais (ambiente de interação por excelência nesse tempo) vestiram as justificativas do autocuidado como se ele bastasse para enfrentar as consequências emocionais das tragédias vividas. Em vez de entendê-lo como parte do cuidado em saúde mental, ele apareceu como regra e saída exclusiva em discursos como “reinvente-se”, “ressignifique”, “isso só depende de você”, “arranje um tempo para si mesmo/a”, “cuide de seu corpo” etc. Ficar em casa pareceu, em muitos enunciados, uma ordem para apenas olhar para si, em imperativos que muitas vezes não conseguimos dar conta. E nessa casa, tanto o lar familiar quanto o lar global, as relações pareciam, muitas vezes, negligenciadas.
O medo de ser alcançado pela doença e os armamentos de notícias com que convivemos expuseram uma característica importantíssima de nossa cultura: a angústia que sentimos diante da dor. A lógica da dor, em uma sociedade paliativa, como a que propõe o pesquisador coreano Byung-Chul Han, fez-nos, durante o exercício da pandemia, atolarmo-nos em atividades, comungando com o que o filósofo também chama de uma sociedade do desempenho. Estamos em casa, e exaustos. Protegemo-nos de um adoecimento e criamos outros em cativeiro. A diferença está em que um é de ordem biológica e incontida; os outros, advindos do discurso capitalista e seu jeito próprio de nos tornar servis e nos manter produtivos.
Dos ganhos, se pudermos assim dizer, que a pandemia nos legou, certamente perceber a importância do outro figura como um dos maiores. Mas também se tornou, cada vez mais, o nosso maior desafio. Reconhecer esse outro (nosso inferno, como sinaliza Sartre), é a medida eficaz e lúcida para reaprendermos antigos costumes, como ir à rua e contemplar os cenários de outrora, no olho vivo e off-line. Se eles são essenciais, só as vivências de cada um poderão dizer.
Ou reaprenderemos a viver como antes do vírus, ou entenderemos, enfim, que nunca mais seremos os mesmos. E nos dois destinos, o cuidado com a saúde mental exige as estratégias de autocuidado tão divulgadas, mas também a compreensão de que estamos num laço irrecusável e salvador com o outro, dentro ou fora de casa. Em vez de nos ocuparmos da tarefa gigante de “reaprender”, podemos “aprender” – juntos – novos encontros. Esperancemos.



