Por Walter Silva
Qual o potencial educador da canção? Essa questão, sem querer, ressurgiu numa conversa que tive com o meu brother-orientador ontem, via chamada de vídeo, sem nenhuma pretensão acadêmica formal, apenas porque não tínhamos nada para fazer a não ser “curtir” a quarentena tomando cerveja (ele) e caipirinha (eu).
A relação verificada entre a dimensão educadora e o universo da canção, mas também presente em outras áreas da produção artística humana, é algo que volta e meia surge nas escolas quando, por exemplo, professores das mais diversas disciplinas buscam “atrativos metodológicos” para as suas práticas docentes. “Vamos trazer ‘Protesto Olodum’, de Tatau, para provocar a discussão sobre a dimensão política do carnaval?” “E que tal ‘Firme e forte’, do Psirico, para falar do planejamento urbano de Salvador?” “Caramba, como ‘Covardia’, gravada por Igor Kanário, revela a complexidade da violência imposta às periferias?”. Tenho certeza de que muitos professores e coordenadores já pensaram nesse sentido, praticamente esgotando as possibilidades de alguém ainda querer trazer alguma novidade sobre o assunto. Mas, calma, eu falei pra-ti-ca-men-te; e por que isso? Bem, primeiro porque a dialética, por si só, já é argumento pra lá de suficiente para duvidarmos da tese do esgotamento temático. Segundo, porque, curiosamente, apesar das canções serem recorrentemente utilizadas nas escolas, nas reminiscências dos cancioneiros, expressas nas letras das canções, a escola e o seu universo quase nunca estão presentes ou, quando estão, raramente aparecem de forma positiva. Essa sacada acabou sendo o objeto de reflexão para o ensaio que eu, Jason Mafra (o brother-orientador) e Edina Ferreira, uma colega do Programa de Pós-Graduação da Universidade Nove de Julho (Uninove), acabamos de escrever e que será, em breve, publicado em um livro organizado pela querida professora Ana Maria Haddad.
No ensaio, a partir de algumas metacanções (canções que trazem nas letras elementos do próprio universo da canção) convidamos o leitor a perceber o caráter dialógico, crítico e didático da poesia cancioneira, como verificamos em Sintonia, um sucesso gravado pelo saudoso Moraes Moreira em 1986; em Para não dizer que não falei das flores, canção que deu a Geraldo Vandré o segundo lugar no II Festival Internacional da Canção de 1968; e em Meu refrão, samba gravado por Chico Buarque em 1966.
A dimensão educadora das experiências vividas e das canções foram inicialmente destacadas em duas metacanções clássicas de Belchior: Apenas um rapaz latino-americano e Como nossos pais, ambas gravadas no vinil Anunciação (1976). Na primeira, o compositor cearense traz a canção Divino e Maravilhoso (GIL; VELOSO, 1969) para, a partir das experiências e conversas com amigos, constatar que a vida por ele vivida não tinha nada de divina e muito menos de maravilhosa; nada de secreta ou de misteriosa. Para ele, “a vida realmente é diferente, quer dizer, ao vivo é muito pior” (BELCHIOR, 1986a). Já em Como os nossos pais, Belchior (1986b) cria uma intencional contradição quando informa ao grande amor que não vai lhe contar o que aprendeu nos discos – ou seja, nas canções –, mas como viveu e as coisas que aconteceram com ele. Acontece, que o universo onde ele se encontra é o da canção. Portanto, o que ele de fato faz a partir desse momento não é outra coisa senão cantar o que ele viveu.
Um traço comum nas obras citadas de Belchior e de Chico Buarque é que ambas destacam muito mais a vida do que a escola, enquanto espaço de aprendizagem – em Meu refrão o compositor disse que teve de fugir da escola para aprender (HOLANDA, 1966). A indiferença em relação à escola vai ganhar força com dois outros compositores, que agora apontam as suas palavras também para o sistema educacional: Roger Waters, quando na canção “Another brick in the wall” avisa aos professores que as crianças não precisam de uma educação controladora de mentes (WATERS, 1979), e Renato Russo, ao apontar que “[porque a escola dele não tem personagens, mas gente de verdade] O sistema é mau, mas minha turma é legal” (RUSSO, 1993). Ao chutarem “o pau da barraca” da escola, Belchior, Chico Buarque, Roger Waters e Renato Russo demonstraram que essa falta de reminiscências positivas não é uma exclusividade brasileira, não pode ser facilmente datada e nem está presa a estilos musicais específicos.
Pois é, como disse, ainda tem muita coisa para ser compreendida no universo da canção, mas se tem um ponto pacífico em todas as discussões que certamente ainda estão por vir é a sua dimensão educadora. Longe de ser um assunto esgotado, estudar profundamente a canção, nas suas relações com outras dimensões da cultura e com o conjunto das relações sociais, pode nos permitir compreender intencionalidades encobertas por narrativas e subjetividades historicamente construídas. Fiquemos atentos a isso, mas sempre “caminhando e cantando e seguindo a canção”, esse parece ser um bom caminho.
REFERÊNCIAS
BARRETO, Zeca; GÓES, Fred; MOREIRA, Moraes. Sintonia. Moraes Moreira. In: Hipertensão. Interpretes: A Cor do Som (part. de Gilberto Gil), Anne Perec, Armandinho, Cláudio Zoli, Engenheiros do Hawaii, Heróis da Resistência, João Bosco, João Gilberto, Moraes Moreira, Rosana, Sá & Guarabira, Titãs e Zeca Pagodinho. Rio de Janeiro: Som Livre, 1986. Long play. Lado A. Faixa 3. (trilha sonora nacional de novela).
BELCHIOR. Apenas um rapaz latino-americano. Belchior. In: BELCHIOR. Alucinação. Rio de Janeiro: Polygram, 1976a. Long play. Lado A. Faixa 1.
BELCHIOR. Como nossos pais. Belchior. In: BELCHIOR. Alucinação. Rio de Janeiro: Polygram, 1976b. Long play. Lado A. Faixa 3.
FERREIRA, Fagner; MENDONÇA, Sá; NOBRE, Ed; SANTANA, Magno. Firme e forte. Márcio Vitor. In: PSIRICO. Psirico 10 anos: ao vivo em Salvador. Salvador: Maurício Musikal, 2012. CD e download digital, Faixa 5. Gravação ao vivo.
GIL, Gilberto; VELOSO, Caetano. Divino e Maravilhoso. Gal Costa. In: COSTA, Gal. Gal Costa. São Paulo: Phillips, 1969. Long play. Lado B. Faixa 2.
TATAU. Protesto Olodum. Betão. In: OLODUM. Núbia Axum Etiópia. São Paulo: Continental, 1988. Long play. Lado B. Faixa 5.
HOLLANDA, Chico Buarque de. Meu refrão. Chico Buarque de Hollanda. In: HOLLANDA, Chico Buarque de. Chico Buarque de Hollanda. São Paulo: RGE, 1966. Long play. Lado B. Faixa 5.
KANNÁRIO, Igor; TELES, J.; [?], Fagner. Covardia. Igor Kannário. Disponível em: <https://youtu.be/XbGx9V70eH4>. Acesso em: 13 de jul de 2020.
RUSSO, Renato. Vamos fazer um filme. Renato Russo. In: LEGIÃO URBANA. Descobrimento do Brasil. Rio de Janeiro: EMI-Odeon, 1993. CD. Faixa 8.
VANDRÉ, Geraldo. Pra não dizer que não falei das flores (Caminhando). Geraldo Vandré. São Paulo: Som Maior. 1968. Compacto simples. Gravado ao vivo no II Festival da Canção Popular. Visualizado em https://upload.wikimedia.org/wikipedia/pt/f/f3/Pra_n%C3%A3o_dizer_que_n%C3%A3o_falei_das_flores.jpg
WATERS, Roger. Another brick in the wall (part II). Intérpretes: David Gilmour. Roger Waters. In: PINK FLOYD. The wall. Londres: Harvest Records. 1979. Álbum duplo. Primeiro vinil. Lado A. Faixa 5.
“Daora”, muito interessante!
A musicalidade no ensino para mim, além de motivar o educando ajuda a compreender valores e disseminar a história de forma mais, digamos, atraente. As ideias e conceitos expostos são muito esclarecedores, vale muito a pena ler.
Texto que nos faz refletir muito! Parabéns!!!
Walter, estou num projeto que realiza processos de formação para professoras do ensino fundamental. A perspectiva geral do projeto é a Educação Contextualizada para a Convivência com o Semiárido. tenho usado duas canções para ilustrar como a música pode ser ferramenta de educação, inclusive fazendo direta referência a conhecimentos das ciências. Luz do sol, do Caetano: de modo poético descreve o processo da fotossíntese. Farinha, do Djavan: descreve a importância nutricional e cultural da mandioca, inclusive ensinando o nome científico da planta. Não é fantástico?
Descobri Frida Kahlo e Almodóvar por Adriana Calcanhoto, Helena de Tróia, Menelau e os espartanos pela voz de Amelinha. A bacia hidrográfica do São Francisco sei de cor porque dancei muito Riacho do Navio.
Se for mencionar aqui, falta espaço. A música foi minha biblioteca!
Excelente texto. Se observarmos bem, a música nos conta a história do nosso país. Aprendi história ouvindo música. As escolas deveriam se utilizar da ferramenta musical para trabalhar o conteúdo. O retorno é maravilhoso.
Parabéns por dar ênfase a esse tema que dizem ter se exaurido, mas você mostra que encontrar um olhar diferente é que faz a gente ir adiante.
Eu sempre uso músicas como mais um atrativo para os temas abordados em sala de aula. Quando a aula é sobre a moral Moderna, inicio com “O lobo” da Pitty. O professor Marcos Antonio Lorieri não conhecia a música e disse que gostou dessa relação. Quando o tema é o amor, inicio com “A maçã” dos compositores Marcelo Motta / Paulo Coelho / Raul Seixas. Quando o tema é liberdade, inicio com “Eu quero ser feliz agora” de Oswaldo Montenegro para introduzir o tema. E uso no final a música “Sapato 36” de Claudio Azeredo / Raul Seixas. E outras músicas mais para outros temas correlatos.
Sem falar das citações a Belchior, Renato Russo, Caetano, Gil, Chico… porque além de utilizar a obra de grandes nome nós professores apresentamos bons artistas para difundir o bom gosto estético.
É isso, Walter.
Abraço.
Walter parabéns pelos apontamentos. Esse diálogo entre a música e a educação é muito importante, diria freiriano, em um momento onde falta a conscientização da população das questões emergentes.
Parabenizo você sua colega e os professores Jason Maffra e Ana Maria Haddad
Samba enredo… História, geografia… Tá quase tudo lá!
Pra debater a língua portuguesa… Pra quê melhor ? Ouçam, quem puder, Individual, de João Cavalcanti e Pedro Luís.
Desculpem: *Indivídua
Muito boa o artigo, dá pra fazer uma reflexão sobre pq ouvir e ouça ate hoje essa galera que você cita. Parabéns Walter sempre bom lê seus artigos.
Excelente Texto ! Instigante e atemporal, como as canções que permeiam as nossas memórias de vida. Pra cada “time” vivido, ao fechar os olhos, com certeza nos conectaremos com algum momento musical.
“Minha jangada vai sair pro mar…” 😉
Ótimo texto! Interessante ver como a relação entre música e educação é muito mais presente e constante do que costumamos imaginar!
Excelente texto!! Minhas primeiras reflexões sobre a realidade fora da bolha, e diferentes formas de pensar e viver, sem dúvidas foram provocadas através da música. Ouvir grandes compositores sendo tão sinceros quanto a realidade do mundo e a ausência de sentido nesses moldes atuais da educação escolar, sem dúvidas, é acalanto pros jovens mais críticos. Agora, trago mais… o rap é mestre nisso! Grande alcance aos jovens, muita coisa a ensinar. Pena ainda ser tão marginalizado…