quinta-feira, abril 25, 2024
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“Me deixem cantar até o fim…”

Por Paulinho Goetze

Oi, gente! Muito feliz em estar de volta ao Portal e mais feliz ainda em saber que foi uma demanda do público leitor. Com muita satisfação recebi o convite para retomar a coluna sobre arte e cultura, dessa vez apenas uma vez por mês por conta do meu doutorado. Então estaremos juntes sempre nas últimas sextas-feiras de cada mês.

Quando o convite chegou, logo comecei a pensar sobre o que poderia escrever. Confesso que muitos temas vieram à mente, mas durante a escrita perdemos a voz gigante de Elza Soares. Como Elza é uma cantora que eu amo muito e que representa tanto o nosso país, resolvi escrever sobre ela.

Elza Soares tinha tudo “pra dar errado” na vida. Nasceu mulher na década de 1930, preta, pobre, na favela onde atualmente é a Vila Vintém, no Rio de Janeiro. Desde cedo precisou aprender a lidar com o racismo e o machismo. Foi obrigada a se casar aos 13 anos com um amigo de seu pai que tentara lhe violentar, aos 14 anos teve seu primeiro filho e aos 15 perdeu o segundo filho para a fome. Desse casamento, Elza levou o sobrenome Soares, que a acompanharia pelo resto da vida.

Começou a cantar e, para conseguir dinheiro, se apresentava na noite, a contragosto de sua família, e em programas de televisão. Foi em um desses programas, um apresentado por Ary Barroso, que Elza mostrou que viera ao mundo para ser uma interventora ao ser questionada pelo apresentador:

– O que você veio fazer aqui?

– Vim cantar

– E quem disse que você canta?

– Eu, seu Ary.

– Então, agora, me responda, menina, de que planeta você veio?

– Do seu planeta, seu Ary!

– E posso perguntar que planeta é esse?

– Do planeta fome!

Planeta Fome, inclusive, é o título do último álbum lançado por Elza em vida, em 2019.

Elza também ficou conhecida pelo relacionamento conturbado com Garrincha, famoso jogador da Seleção Brasileira de Futebol à época. O casamento com Garrincha foi marcado por muita violência doméstica e eles tiveram apenas um filho que morreu aos 9 anos em um acidente de carro. No total, Elza teve oito filhos, dos quais enterrou quatro. Sobre essas perdas ela falou ao portal UOL em 2018:  “A única coisa do passado que ainda me machuca é a perda dos meus quatro filhos. O resto tiro de letra. Mas filho é uma ferida aberta que não cicatriza. Estará sempre presente!”

Quando vivia com Garrincha, a casa em que moravam foi metralhada em uma madrugada e eles precisaram se asilar na Itália. Se separaram em 1982 e ele morreu 1 ano depois, vítima de uma cirrose hepática decorrente do vício em álcool:

“Foram 17 anos juntos. Hoje é chique ser mulher de jogador, é uma promessa de futuro. Mas, quando se faz por amor, a pessoa não se arrepende nunca. Não tenho mágoas, passado é passado. Passou! Eu vivo o agora. O futuro não sei”, afirmou em entrevista para a revista “Quem” em 2016.

A voz peculiar de Elza é apontada como uma das mais belas vozes do mundo e, na década de 1960, Louis Armstrong tentou levá-la para os Estados Unidos. Apesar de todo sucesso, no início da década de 1984, Elza estava no ostracismo e, deprimida, havia resolvido parar de cantar. Foi Caetano Veloso quem não permitiu que isso acontecesse lhe prometendo uma canção, “Língua”, com quem gravou em dueto em 1984 e então não parou mais.

Em 1999, Elza foi eleita pela BBC de Londres como a cantora brasileira do milênio. Em 2003, foi indicada ao Grammy Latino pelo trabalho “Do Cóccix ao Pescoço”. Quatro anos depois, se emocionou ao cantar o Hino Nacional à capela na abertura dos Jogos Panamericanos no Rio. Porém, foi “A Mulher do Fim do Mundo”, primeiro álbum só de inéditas lançado após mais de seis décadas de carreira, que se tornou seu trabalho mais premiado. Com ele, a cantora recebeu o Troféu APCA da Associação Paulista de Críticos de Arte, o Prêmio da Música Brasileira e o Grammy Latino de Melhor Álbum de MPB. (UOL, 2018)

Elza Soares entoava na canção “Mulher do Fim do Mundo” os versos: “Eu quero é cantar, eu vou cantar até o fim, me deixem cantar até o fim”, e de fato cantou até o fim. Dois dias antes de morrer, Elza gravou um DVD no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, e em estúdio deixou um novo álbum inédito em produção.

A vida de Elza Soares é inspiradora. Em um país tão racista, machista, sexista, sua voz ecoou por todas as classes, por todos os espaços, por todas as pessoas. Morreu no mesmo dia que Garrincha, com 29 anos de diferença, cercada pela família e amigos. Sobre sua morte, Caetano escreveu: “Morreu na glória a que fazia jus, numa idade respeitável, afirmando a grandeza possível do Brasil”.

Uma voz como Elza Soares não morre, ela é semente e se multiplica todos os dias em meninas e mulheres pretas que tem na existência de Elza o seu exemplo de vida e a certeza de que essa porta, aberta por ela, não voltará a se fechar.

Elza vive!

Viva Elza!

 

Fonte:

(foto 1 – Divulgação UOL 2018)

(foto 2 – CNN Brasil)

Bacharel em Estudos de Gênero e Diversidade pela Universidade Federal da Bahia, Mestre em Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres, Gênero e Feminismo, Doutorando no mesmo programa. Autor do livro “Daniela Mercury: trajetória, produção e inovação”.

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