Por Walter Silva
A coluna de hoje sai por encomenda, mas também por coincidência. Explico: ontem, meu amigo Gilberto Romano mandou um “zap” no grupo dos colunistas do Portal Som de Papo sugerindo, para quem não tivesse ainda escrito a coluna (“euzinho” era um deles), que o fizesse utilizando a temática do dia dos pais. Realmente não tinha pensado nisso. Tinha em mente outra temática, até porque não me ligo muito nessas datas, mas não demorou mais do que alguns segundos para eu processar a sugestão e lembrar de um bom bate papo que mantive com outros queridos amigos, em outro grupo, mas com um tema muitíssimo aderente ao sugerido: filhos músicos de pais músicos, tal pai, tal filho(a)?
A conversa começou quando o meu amigo e colega de Instituto Federal do Piauí, o professor Jair Feitosa, postou uma live de uma “cantora e compositora”, filha de um supercompositor e cantor, que, definitivamente, ainda tem de ralar muito para fazer jus ao sobrenome que carrega, se quiser dar continuidade à carreira musical (tentei colocar quatro aspas em cantora e compositora, mas não ficou graficamente legal, portanto ficam duas, mas com intenção de quatro). Copio aqui o que ele escreveu no grupo: “Cara, esses filhos do [pinnnnnnnnnnnn] são uns porra louca. Essa filha dele não canta nada. Compõe coisas lamentáveis. Não toca nada. Erra o tempo todo. Mas aí no minuto 13’40” ele entra pra salvar a catástrofe”. Fiquei surpreso por ele ter esperado 13’40’’, mas a concordância foi unânime e não foi burra.
Na sequência, outro grande músico, quase um Toninho Horta de Lorena (SP), Ricardo Machado, deu a deixa para a conversa e, sem saber, para o tema de hoje: “Pois é… nem sempre funciona a máxima ‘tal pai, tal filho”. Lacrou!
,A partir daí, o que decorreu foi uma sucessão de exemplos de cantores, cantoras, compositores, compositoras, que se não fosse pelo sobrenome mantido pela maioria, ninguém lembraria da descendência artística simplesmente porque todos(as) conseguiram aliar seus talentos individuais à criação de uma personalidade musical própria. Seria esse o segredo para um corte umbilical de sucesso? Não chegamos a discutir isso, mas, pessoalmente, eu digo que sim, que isso pesa muito!
Defendendo essa tese, bem na base do “achismo” e inspirado em Raimundo Clarindo, pergunto: mesmo com a associação midiática, às vezes involuntária, se fosse possível abstrair o fato biológico de, por exemplo, Luisa Possi ser filha de Zizi Possi, apenas analisando a obra dela, associaríamos Luísa à Zizi? Pensaríamos em Luísa como um apêndice da mãe? E o que dizer de Gonzaguinha, ele tornou-se um dos grandes cantores e compositores pongando no nome de Gonzagão? Agora vou pegar mais pesado ainda: e Armandinho, foi na sombra do “Velho Osmar” que ele tornou-se, na minha opinião, um dos guitarristas mais importantes do Brasil?
Vão pensando aí, enquanto eu amplio a lista trazendo, agora, a categoria de filhos(as) que herdaram, além do nome, timbres vocais bem semelhantes aos dos pais (vou colocar uma mãe no meio, mas não é pra brigar com ninguém). Refiro-me a Maria Rita, Diogo Nogueira e Daniel Gonzaga, três exemplos de cantores que, em vários momentos, ao ouvi-los, parecia que estava numa sessão mediúnica-musical.
Não sei, mas parece-me que, nesses casos, a pressão e a dificuldade para se desvencilharem da herança dos pais é ainda maior. Contudo, é inegável que a carreira deles assumiu vida própria, provavelmente porque souberam lidar muito bem com a pressão da imprensa, com a produção musical e com a própria cabeça. Vejamos o caso de Daniel Gonzaga, filho de Gonzaguinha e neto de Gonzagão, concordando com Jason Mafra, o músico mais importante da história da chamada MPB. Quem ouve o CD Areia (2004) vai se surpreender com o ecletismo e a qualidade das composições e dos arranjos sem nem desconfiar da linhagem musical do cantor, músico, arranjador, produtor musical… ponto pra ele. Nesse quarto disco de Daniel Gonzaga, destaco as canções Nascente, pela pegada blues, ainda que você jure ouvir um xote na base rítmica (sim, ele está lá), e Beijo, pelo quase reggae que se insinua no decorrer dos 6min6seg da faixa 6 (vai ter gente viajando nessa coincidência, mas não percam tempo com isso, foco no CD porque ele é todo bom). Contudo, é na canção Janela (faixa 7), que a cabeça da gente dá um nó piagetiano. Dá pra jurar que é um Gonzaguinha, que não é Gonzaguinha, cantando uma canção como nunca cantaria simplesmente porque não é ele. Eu disse que era confuso, mas é quando chegamos a essa constatação que Daniel Gonzaga cresce e se mostra como o artista que é: um músico tão fantástico e autoral que reforça a tese de que é no afastamento que as pessoas se encontram, nem que sejam com elas mesmas.
Mesmo faltando uma semana para o dia dos pais, desejo a todos um dia muito musical e mando o papo reto: papai-cantor-top-das-galáxias, entendo e até acho legítimo que você queira perpetuar a sua verve musical para todo o sempre por meio dos seus filhotes, mas, na moral, não “force a natureza”. Admita a hipótese de que a sorte musical pode não ter lhe agraciado com o fez com Dorival Caymmi, Almir Sater, Bob Marley, Lenine, João Gilberto, Jair Rodrigues, Herivelto Martins, Dominguinhos, Martinho da Vila, Nat King Cole, Álvaro Assmar…
Acredito que tal pai, tal filho nem sempre role, claro que é natural e compreensível que os filhos aprendam muito com os pais, sobretudo com a convivência…mas talento e afinidade é algo muito íntimo!
Muito interessante! Confesso que eu, inclusive, gostaria de ter sido capaz de “perpetuar a verve musical” de meu pai… kkkkkk
Abomino o determinismo biológico, se é que isso existe.
Quando “um filho de” aparece, lhe dou todo benefício da dúvida, espero que este reconheça o privilégio da hereditariedade, e o tempo, como sempre, faz o julgamento.
Maior exemplo disso para mim é Diogo Nogueira ( apenas por que é dia dos pais, fosse dias das mães seria Maria Rita).
Belíssimo e criativo texto, dando uma passeada fantástica pelas famílias de nomes importantes na nossa galeria musical, de forma bem humorada e objetiva. Parabéns !!
Nessa vibe, lembrei de outra máxima: “Quem puxa aos seus, não degenera”.
Na prática, muitos “degeneram”. Infelizmente.😉
Se” filho de peixe peixinho fosse ” o nosso aquário musical estaria resguardado dos tubarões…
Existem algumas lacunas, primeiro tem que gostar daquilo que os seus pais fazem, depois treinar e por aí se vai…
E só lembrando que por mas que os búfalos tem tetas, só isso não significa que terá leite em abundância…. Só pra reflexão….
Acho que tal pai tal filho funciona em.alguns aspectos. A genética para os timbres vocais.acho que conta. Temos vários exemplos por aí. Mas cantar é mais do que usar a “configuração” dadá pela genes… Ritmo, graça, balanço, swing, carisma… Tudo isso vai ter que se unir ao timbre e aos condicionantes advindos do berço. Talvez filho de peixe possua todas as condições para ser um peixe. Mas gente não é peixe. E cantar não é daquelas coisas que a gente faça só com a herança genetica…
Bela sacada, Walter.
Não imaginei que meu comentário sarcástico fosse resultar num belo texto. Mas isso só depende de uma coisa: perspicácia. E você tem de sobra.
“… conseguiram aliar seus talentos individuais à criação de uma personalidade musical própria…” gostei desse argumento.
Parabéns
Sim, bem isso! Infelizmente (ou felizmente) a genética é só uma parte de “quem se é”. Pra ter destaque, ainda deve se contar com a sorte, competência, afinidade, e empenho!
Agora, famílias como a dos “Marley”, compostas por vários músicos talentosíssimos, realmente é surpreendente! Coisa rara!
Walter, meu amigo,.essa tese é muito boa e vale também pela antítese que ela provoca: filhos de peixinhos que se tornam peixões. A referência familiar, artística e psicanalítica sempre será uma presença indiscutível. Penso que, para.além da injustiça da cobrança que nós, conscientes ou não, fazemos, o que interessa na arte, como.tudo.mais, é o tijolo que cada um(a) pode colocar nessa epopeia humana de sermos co-autores dessa grande criação, a arte de expandirmos o Universo.
Discussões como esta nos mostram o quanto as questões relacionadas a música são mais profundas que simplesmente a execução isolada de cada obra. Mais um belíssimo texto que levanta mais e mais discussões. Parabéns por colocar a música num debate produtivo e menos tecnicista do que costumamos ver! Você é dez!