terça-feira, abril 23, 2024
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A Bahia de Paulo César Pinheiro – 1

Por Walter Silva

Há alguns anos, quando amigos me falaram sobre plataforma de streeming de música, eu fiquei meio cabreiro. Como assim, deixar de ouvir o meu “pen drive” com não sei quantas mil músicas, que nem se eu reencarnasse dez vidas conseguiria ouvir tudo, para ouvir músicas que estão na nuvem? E se elas sumirem, ou seja, se os interesses financeiros das gravadoras e das plataformas não coincidirem? E minha discografia de Chico, Caetano, Gil, Dominguinhos…? Eis que o tempo passou e eu nem tenho mais “pen drive” (mas meus vinis estão intactos).
Mesmo resistindo aos avanços tecnológicos de compartilhamento de músicas, hoje sou um dependente confesso e revoltado dessas plataformas, pois se elas facilitam a busca por trabalhos antigos e nos aproximam da moçada que está chegando, elas também “invisibilizam” músicos, arranjadores, técnicos, produtores, projetos gráficos… Enfim, foi garimpando canções nessa rede que eu reencontrei um compositor que sempre me tocou pelas letras das canções que assinou, mas também pela conexão musical que ele sempre buscou estabelecer com a Bahia, uma conexão invejável principalmente para uma grande massa de compositores da “terrinha” que não conseguem, como ele, interpretá-la com tamanha profundidade, originalidade e respeito. Refiro-me ao carioca Paulo César Pinheiro e ao CD “Capoeira de Besouro”, trilha sonora da sua primeira peça teatral, “Besouro Cordão de Ouro”, encenada em 2006 e vencedora do Prêmio Shell de Teatro nas categorias melhor música e direção musical.
Gravado em 2010 pela Biscoito Fino, infelizmente já fora de catálogo mesmo tendo vencido o Grammy de Melhor Álbum Regional e Melhor Projeto Visual no Prêmio da Música Popular Brasileira, o CD traz no título, e não por acaso, a figura emblemática de Besouro. Nascido em Santo Amaro (1895), Manoel Henrique Pereira tornou-se uma lenda na capoeira pela coragem e disposição que tinha para enfrentar a repressão policial, bem como pela habilidade em lutar com vários oponentes e de escapar do perigo, quando em extrema desvantagem. Daí a sua fama de ter o corpo fechado e o apelido, pois dizia-se que ele, nessas circunstâncias, voava como um “besouro mangangá”, um dos diversos e genéricos nomes dado às espécies das grandes abelhas, de ferroada dolorosa e que emitem zumbido alto ao voar.
Pesquisando no sítio do Museu da Imagem e do Som (MIS) sobre a obra de Paulo César Pinheiro, aprendi que há um nexo bastante evidente, mas que até então não havia percebido, entre esse CD e diversos outros trabalhos do autor: a figura de Besouro perpassa a obra de Paulo César desde a sua primeira canção gravada, “Lapinha”, vencedora da 1ª bienal do Samba de 1968 da TV Record, composta em parceria com Baden Powell e gravada por Elis Regina e os Originais do Samba. Quatro anos depois da gravação de “Lapinha” (“Adeus Bahia, zum-zum-zum / Cordão de Ouro / Eu vou partir porque mataram o meu Besouro”) a dupla grava a canção “Besouro Mangangá” (“Morreu ele morreu de dor / Era Besouro sempre valente não chorou”) e em 1982, dez anos depois e em parceria com João Nogueira, vai ser gravada a canção “Besouro da Bahia” (“E na roda da valentia / O seu nome ficou gravado / O mestre Besouro da Bahia”).
Estabelecida essa relação, reforçada quando sabemos que Paulo César Pinheiro realizou pesquisas em Santo Amaro para melhor conhecer o capoeirista, ouvir “Capoeira de Besouro” acaba nos aproximando do sentido ao qual eu me referi anteriormente, quando destaquei o compositor como um dos poucos que conseguiram construir um trabalho respeitoso e compromissado com a profundidade da música baiana. Fica evidente que a intenção de Paulo César Pinheiro não é apenas utilizar Besouro como inspiração musical, mas de, por meio da canção, (re)contar a sua história, os seus valores, a sua personalidade.
“Capoeira de Besouro” é um exemplo de como a pesquisa etnomusical pode inspirar a produção artística de forma respeitosa e extremamente qualificada. Das quinze faixas, catorze delas são canções compostas a partir da lógica que caracteriza a estética musical e instrumental de cada toque e a especificidade de cada jogo da capoeira. Mas alerto aos puristas que, mesmo tendo a participação especialíssima dos Mestres Camisa e Victor Lobisomem, “Capoeira de Besouro” não é um típico CD de capoeira, onde são reproduzidos os toques de uma roda, mas um registro criativo sobre a capoeira. Ou seja, inspirado nela, o autor sintetiza o instrumental percussivo da capoeira com sambas de roda, imprimindo ao trabalho um indefectível toque de “manhã de sábado no Mercado Modelo”.
Resistindo à vontade de comentar faixa por faixa, começo pelo começo, mas vou dando uns “aus” até chegar ao final, esforçando-me para não chatear o leitor. A faixa que abre o CD é destinada ao “Toque de Amazonas”, um toque festivo e tradicional das rodas de capoeira, pois é o momento de saudação dos mestres e dos alunos convidados para a roda. Nessa faixa o compositor escreveu “Quem vem de tudo que é canto / pros rumos da capital / No pé, na mão, no punhal / que ouça a voz de Besouro / porque Besouro era o tal / Punhal não tem serventia / depois de um giro mortal” e segue convidando para a roda alguns dos mais famosos mestres da Bahia: “Vem Caiçara, Budião / Vem Canjiquinha / Vem Dora e Rosa Palmeirão / Vem Barroquinha”. Já na faixa dois, “Toque de Benguela”, o compositor escreveu, mesmo sendo comum nas rodas de capoeira regional não haver letra quando esse toque é executado, “Mãe-África engravidou em Angola / Partiu de Luanda e de Benguela / Chegou e pariu a capoeira / no chão do Brasil, verde e amarela / é de Angola / Mangangá nunca foi nem é de intriga”.
Um dos toques bem conhecidos da capoeira chama-se “Toque de Cavalaria”, título da faixa 6, que surge como uma forma de alertar a roda de capoeira da aproximação dos policiais montados (a Cavalaria era o destacamento da polícia que normalmente dispersava as rodas de capoeira). O capoeira que estivesse observando a movimentação do entorno da roda deveria imprimir um toque no berimbau que imitasse o trote dos cavalos e que não fosse parecido com os demais toques, para ser imediatamente percebido pela roda, que dispersaria rapidamente ou se prepararia para o confronto com os policiais. Vejamos um trecho do que Paulo César Pinheiro escreveu nessa canção: “O povo segue o ensinamento / que o mestre mangangá dizia / Pra quem é bravo e violento / vamos tocar cavalaria”. É ou não é a cara de Besouro?
A partir da faixa 11, “Toque de Angola”, é possível perceber que a condução do CD vai sendo alterada paulatinamente com a introdução do samba de roda. Essa organização das faixas agrega ao conjunto das canções uma espécie de “crescendo” que confirma, na minha opinião, uma posição que defendo desde quando fazia a produção musical do afoxé Filhos do Congo, e lá se vão uns quinze anos: samba de roda tem de ter berimbau! Não entendo o porquê de os arranjadores baianos não destacarem o potencial sonoro desse riquíssimo instrumento. Por conta disso, destaco o trabalho incrível que Sidney Argolo vem desenvolvendo com os filhos no Grupo Étnico Cultural da Bahia.
Não tem como terminar sem falar da última canção: “Samba de Roda” é uma maravilha! Ela encerra primorosamente o CD ameaçando o próprio diabo, “quando eu morrer / se eu tiver de ir para o inferno / o diabo que se cuide / pois ele está no meu caderno”, e ainda complementa: “quando eu morrer / que não seja em feriado / que é dia de capoeira / lá na rampa do Mercado”.
Essa é a mandinga que Paulo César Pinheiro tão bem transportou para “Capoeira de Besouro”; é a mandinga da roda da capoeira e do samba de roda, que rapidamente acontecia quando a roda estava ameaçada pela repressão. Ou seja, parecia que acabava, mas estava só começando, assim como esta coluna, ou vocês não notaram que o título é A Bahia de Paulo César Pinheiro – I?
Para terminar, em memória da minha querida amiga Potira, mando um “salve” para meus irmãos do grupo Capoeira de Quilombo, conduzido na resistência pelo mestre Tizil e pelo professor Quina. Mas o mundo da capoeira é uma grande roda, por isso, no “Toque de Amazonas” dos meus amigos mestres, sempre cantarei: vem mestre Tizil / vem mestre Pitbull / vem mestre Gilson Cardoso / Salve todos os mestres, camará!

CD Capoeira de Besouro

Ficha técnica:
Paulo César Pinheiro: voz
Mestre Camisa: berimbau gunga
Victor Lobisomem: berimbau viola
Maurício Carrilho: violão
Luciana Rabello: cavaquinho
Celsinho Silva: pandeiro
Paulinho Dias: percussão
Ana Rebello, Amelia Rebello, Luciana Rebelo, Alan Rocha, Celsinho Silva, Jayme Vignoli, Leonardo Pereira e Paulinho Dias: coro.

3 COMENTÁRIOS

  1. Walter Silva e Silva, faz emergir a criticidade musical pelo seu respeitável talento. Baiano, músico e dedicado doutorando, busca a.valorização:da música regional, dos cantores populares apagados da cultura. Neste contexto o processo de análise musical, estimula a reflexão das lutas sociais e políticas de cada época. A música popular antes cultura e reflexão à população, hoje massificação e alienação.

  2. Eita, mais uma vez o Walter mostrou conhecimento e maestria na análise temática a que se destina. Demonstra profundidade para além de um texto cujo propósito deve ser a satisfação dos fãs desse estilo musical escrito num portal da Internet. Consentâneo no raciocínio e esmerado na liguagem, cativa o leitor a esperar a segunda parte do texto.

    Deu até vontade de virar uma lenda só pro Walter contar a minha história quando eu for lenda.

    Parabéns.

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